OURIQUE, J. L. P. Identidade, Regionalismo e Regionalidade em
João Simões Lopes Neto e Graciliano Ramos: diálogos sobre formação
cultural. In: SIMÕES, Maria João. (Org.). Imagotipos literários:
processos de (des)configuração na imagologia literária. 1ed.Coimbra:
Centro de Literatura Portuguesa, 2011, v. 1, p. 77-100.
Identidade, Regionalismo e Regionalidade em
João Simões Lopes Neto e Graciliano Ramos:
diálogos sobre formação
cultural
OURIQUE,
João Luis Pereira1
Este
trabalho visa refletir acerca da produção literária do escritor
gaúcho João Simões Lopes Neto, relacionando com parte da produção
literária de outro grande nome da literatura brasileira, Graciliano
Ramos, que também adotou a temática regional. Partindo da discussão
sobre a questão da regionalidade, pretende-se apontar para
possibilidades e variantes interpretativas com sustentação da
Teoria Crítica da Sociedade, fundamentada a partir dos pensadores da
Escola de Frankfurt, discutindo as possíveis contradições sobre
temas relacionados com a identidade e formação cultural, sob a
perspectiva da Literatura Comparada.
A
discussão que permeia esse trabalho se insere em uma crítica às
visões autoritárias que sustentam e legitimam as noções ligadas
ao regionalismo literário e aos estereótipos resultantes de
leituras parciais desconexas de uma noção mais ampla de formação
cultural. Dessa forma, abordar parte da obra dos escritores gaúcho e
nordestino à luz da perspectiva alegórica apresentada por Walter
Benjamin, em Origem
do Drama Barroco Alemão
(1984), evidencia que o conceito de regionalismo
se relaciona com um universo simbólico atemporal, enquanto
regionalidade
se apresenta como uma forma de leitura, como uma figura tardia,
baseada em conflitos culturais. Assim, comparar João Simões Lopes
Neto com Graciliano Ramos apresenta uma possibilidade de reflexão
acerca de uma sociedade em transformação, na qual mitos estavam
sendo discutidos à luz de uma nova ordem social sem, no entanto,
romperem totalmente com os valores tradicionais.
1. REGIONALISMO E
REGIONALIDADE
Segundo o dicionário
Aurélio, o verbete regionalismo é uma “doutrina que incrementa os
agrupamentos regionais”; “sistema ou partido dos que defendem os
interesses regionais”; “locução peculiar a uma região, ou a
regiões”; “caráter da literatura que se baseia em costumes e
tradições regionais”.
Para o dicionário
Houaiss, regionalismo é “caráter de qualquer obra (música,
literatura, teatro etc.) que se baseia em ou reflete ou expressa
costumes ou tradições regionais”; “tendência a só considerar
os interesses particulares da região em que se habita”; “doutrina
política e social que favorece interesses regionais”; “palavra
ou locução (dialetismo vocabular) ou acepção (dialetismo
semântico) privativa de determinada região dentro do território
onde se fala a língua”; “caráter do texto literário que se
baseia em costumes e tradições regionais, e que tem como uma de
suas características o uso de linguagens locais”.
De acordo com
historiadores e críticos literários como Antonio Candido (1964),
Alfredo Bosi (1989), João Luiz Lafetá (2004), o regionalismo
brasileiro é uma corrente literária que surge em meados do século
XIX, nas obras de José de Alencar, de Bernardo de Guimarães, de
Alfredo D’Escragnolle Taunay e de Franklin Távora no período do
romantismo brasileiro.
Enfatizam, porém,
que é no século XX, entre os anos de 1930 e 1940, que ocorre um
momento de maior expressão, principalmente com a produção do
chamado ciclo do romance nordestino, cujos principais escritores
regionalistas são José Américo de Almeida (A
bagaceira,
1928), Rachel de Queiroz (O
Quinze,
1930), Jorge Amado (Cacau,
1933), José Lins do Rego (Menino
de engenho,
1932) e Graciliano Ramos (Vidas
secas, 1938).
(VIANNA, 1997). É importante destacar que tal situação não surgiu
de forma isolada, visto que se relaciona diretamente com o período
que ficou conhecido como pré-modernismo (transição entre o
parnasianismo e o simbolismo e o movimento modernista). Esse período
ao mesmo tempo em que sofreu influência das vanguardas européias,
também consolidou uma visão acerca dos diversos contextos regionais
do Brasil e no qual se insere a obra de João Simões Lopes Neto.
Segundo Vianna
(1997, p. 121), a principal característica do regionalismo
tradicional é “o apelo nostálgico a um passado rural cuja perda
se lamenta e cujos aspectos são descritos minuciosamente, para
recompor o antigo mundo do campo que se quer contrapor à perda das
tradições da vida na cidade”.
Em entrevista para a
revista LivreMercado,
Daniel Lima define regionalidade como
um conjunto amplo de informação
e de análise que transcende determinado Município ou determinada
região, por mais que o foco regional esteja centralmente voltado
para determinado ponto. Regionalidade é ir fundo num determinado
território geográfico sem deixar escapar implicações nacionais e
internacionais que atingem esse mesmo território nos mais diferentes
campos de informação econômica, financeira, social e gerencial,
tanto pública quanto privada. Regionalidade não é a cauda
localizada da globalização, como alguns tentam vender.
Regionalidade é a essência da globalização. Globalização é a
soma de regionalidades, é o corpo, a alma e o espírito.
É importante
comentar a perspectiva de José Clemente Pozenato (2008) quando
discute a diferença principal entre regionalidade e regionalismo:
Por sua proximidade semântica,
estes [...] termos podem ser facilmente confundidos. Em especial,
isto tem acontecido com as palavras regionalidade e regionalismo. Ao
menos no campo da literatura brasileira, o conceito de regionalismo
tem sido utilizado para identificar e descrever todas as relações
do fato literário com uma dada região. Penso que este significado
deve ser reservado para o conceito de regionalidade. O regionalismo
pode ser identificado como uma espécie particular de relações de
regionalidade: aquelas em que o objetivo é o de criar um espaço –
simbólico, bem entendido – com base no critério da exclusão, ou
pelo menos da exclusividade. Esse critério se manifesta, no caso da
produção literária, pelo uso de um dialeto, quando não de uma
língua, de estrita circulação interna.
Logo, é possível
observar, genericamente, que o regionalismo literário se sobressai
quando enfoca determinada região brasileira, visando retratá-la de
maneira profunda ou de modo superficial. A regionalidade, porém, vai
além desta visão, pois para a regionalidade é a consciência
coletiva que une a população de uma determinada região, em torno
de sua cultura, de seus sentimentos e de seus problemas; permitido e
exigindo uma leitura comparatista entre essas diversas consciências.
Vianna (1997, p.
121) apresenta regionalismo como uma
corrente literária que se
manifesta na literatura brasileira desde o Romantismo e cujo momento
de maior expressão encontra-se entre os anos de 1930 e 1940,
principalmente com a produção do chamado Ciclo do romance
nordestino, cujo principais expoentes são José Américo de Almeida
(A bagaceira,
1928), Rachel de Queiroz (O
Quinze, 1930), Jorge
Amado (Cacau,
1933), José Lins do Rego (Menino
de engenho, 1932) e
Graciliano Ramos (Vidas
secas, 1938). A
principal característica do regionalismo tradicional é o apelo
nostálgico a um passado rural cuja perda se lamenta e cujos aspectos
são descritos minuciosamente, para recompor o antigo mundo do campo
que se quer contrapor à perda das tradições da vida na cidade.
Discutindo sobre a
questão da regionalidade, José Auricchio Júnior (2007), por sua
vez, apresenta a seguinte definição:
como o conjunto de propriedades e
circunstâncias que distinguem um espaço e que permitem sua
comparação com outras regiões; consciência coletiva que une os
habitantes de uma determinada região em torno de sua cultura, seus
sentimentos e problemas; formação social que surge da articulação
de esforços conjuntos das autoridades públicas, dos empresários,
dos representantes de segmentos da sociedade civil e dos
representantes de outras organizações no espaço da região, que
pode ser geográfico, administrativo, econômico, social e cultural.
Dessa forma, ao
pensar Regionalidade
ao invés de regionalismo, há o interesse em articular uma reflexão
não restrita a uma busca identitária que, segundo Zilá Bernd, pode
se caracterizar em etnocentrismo, visto se tratar “de um conceito
traiçoeiro na medida em que ele pode transformar-se em um conceito
de circunscrição da realidade a um único quadro de referências”
(BERND, 1992, p. 16). Essas considerações não procuram romper com
o conceito de identidade ou com o reconhecimento do valor do
regionalismo como responsável por “resguardar um importante
conjunto de valores literários e de tradições locais” (RAMA,
2001, p. 210-211). Todavia, isso não pode ser empecilho para a
reflexão crítica, e questões como identidade
regional,
valores
culturais
e tradição
necessitam ser tratadas à luz de suas contradições. Segundo Rama,
o confronto da tradição com o novo, do regional com o universal:
gera em primeiro lugar uma
retirada defensiva, um mergulho protetor no seio da cultura regional
e materna, com um premente apelo a suas fontes nutritivas, mas também
com o desejo de reexaminar de forma crítica suas condições
peculiares, as forças de que dispõe, a viabilidade dos valores
aceitos sem análise, a autenticidade de seus recursos expressivos.
(RAMA, 2001, p. 214).
Analisar esse recuo,
observar como essa retirada de fato questiona seus valores é o
desafio da leitura de textos que dialogam a partir do referencial de
uma identidade em transformação, mas que procura uma estabilidade
consoladora do espírito. O paradoxo que pode emergir é o da não
percepção das inviabilidades que estão presentes em qualquer
manifestação literária, estruturando-se, assim, em uma retirada
estratégica
com o fim único de fortalecer as ideologias. O clima de tensão deve
ser mantido para que a reflexão aconteça em nome de ideologias mais
humanitárias, evitando, com isso, as visões totalitárias e os
modelos literários que atuam – não raras vezes - como elementos
reducionistas das diversas culturas que permeiam a sociedade.
É possível abordar
uma noção de regionalidade, tendo em vista que o termo regionalismo
se distancia entre várias possibilidades de entendimento. Conforme o
estudo de Lígia Chiappini (2008), o regionalismo literário possui
estudos e abordagens conceituais claras e coerentes. Segundo a
pesquisadora:
Regionalismo na literatura, como
tema de estudo, constitui um desafio teórico, na medida em que
defronta o estudioso com questões das mais candentes da teoria, da
crítica e da história literárias, tais como os problemas do valor,
da relação entre arte a sociedade; das relações da literatura com
as ciências humanas; das literaturas canônicas e não-canônicas e
das fronteiras movediças entre clãs. Estudar regionalismo hoje nos
leva a constatar seu caráter universal e moderno. Surgindo como
reação ao iluminismo e à centralização do Estado-nação, hoje
se reatualiza como reação à chamada globalização. Se, para um
pensamento não-dialético, a chamada “aldeia global” suplantou
definitivamente a “aldeia” e tudo o que dela fale e por ela se
interesse, a dialética nos faz considerar que a questão regional e
a defesa das particularidades locais hoje se repõem com força,
quanto mais não seja como reação aos riscos de homogeneidade
cultural, à destruição da natureza e às dificuldades da vida e
trabalho no “paraíso neoliberal”.
Uma dessas
possibilidades de entendimento que o termo regionalismo não
contempla claramente é a incorporação das contradições; admitir
a falência da cultura como um todo e a mera tentativa do
estabelecimento de verdades precárias, tão necessárias para a
construção de ideologias que permitem ao indivíduo transitar em
espaços e momentos culturais paradoxais, precisa ser considerado.
Regionalidade não se opõe a regionalismo – quer seja este último
percebido do ponto de vista do viés tradicionalista ou da crítica
literária – mas incorpora as contradições da qual faz parte,
tentando refletir sobre esse processo. Chiappini comenta a tendência
mutável e de trânsito dessa produção regionalista, destacando que
A função da crítica diante de
obras que se enquadram na tendência regionalista é, por isso,
indagar da função que a regionalidade exerce nelas; e perguntar
como a arte da palavra faz com que, através de um material que
parece confiná-las ao beco a que se referem, algumas alcancem a
dimensão mais geral da beleza e, com ela, a possibilidade de falar a
leitores de outros becos de espaço e tempo, permanecendo, enquanto
outras (mesmo muitas que se querem imediatamente cosmopolitas,
urbanas e modernas) se perdem para uma história permanente da
leitura.
Nas Passagens,
Walter Benjamin aponta para uma “pequena proposta metodológica
para a dialética da história cultural” na qual estabelece uma
relação muito próxima da dialética
negativa2
de Theodor Adorno. Segundo a perspectiva do filósofo frankfurtiano,
é necessário adotar uma postura dialeticamente negativa para que as
contradições possam ser percebidas; acrescenta ainda que as
contradições não existem simplesmente na sociedade, elas surgem do
processo de observação, dos enfrentamentos com valores não
questionados até o momento.
É muito fácil estabelecer
dicotomias para cada época, em seus diferentes “domínios”,
segundo determinados pontos de vista: de um modo a ter, de um lado, a
parte “fértil”, “auspiciosa”, “viva” e “positiva”, e
de outro, a parte inútil, atrasada e morta de cada época. Com
efeito, os contornos da parte positiva só se realçarão nitidamente
se ela for devidamente delimitada em relação à parte negativa.
Toda negação, por sua vez, tem o seu valor apenas como pano de
fundo para os contornos do vivo, do positivo. Por isso, é de
importância decisiva aplicar novamente uma divisão a esta parte
negativa, inicialmente excluída, de modo que a mudança de ângulo
de visão (mas não de critérios!) faça surgir novamente, nela
também, um elemento positivo e diferente daquele anteriormente
especificado. E assim por diante ad
infinitum, até que
todo o passado seja recolhido no presente em uma apocatástase
histórica. (BENJAMIN, 2006, p. 501).
E é assim que a
literatura
regional
necessita ser percebida: do confronto dos seus valores com o processo
de construção de novas identidades e projetos sócio-culturais até
o devido reconhecimento de que qualquer produção literária compõe
a história cultural. Dessa forma, a tensão que o regionalismo
estabelece entre tema e linguagem deve ser entendida e percebida de
maneira clara dentro do contexto de expressão e representação
cultural, porque “se torna um instrumento poderoso de transformação
da língua e de revelação e autoconsciência do país; mas pode ser
também fator de artificialidade na língua e de alienação no plano
de conhecimento do país”
(CANDIDO, 2002, p. 87).
Essas reflexões
apontam para o entendimento de que regionalidade
é, antes de tudo, uma forma de leitura, e não de escrita, assim
como a Alegoria é entendida por Walter Benjamin em sua relação com
o símbolo. O termo se torna indissociável do conceito precário de
regionalismo, mas evidenciando o aspecto regional em primeira
instância. Caracterizam-se, assim, lado a lado, como conceitos
duplos
(a exemplo da definição de Walter Benjamin – 1984 - sobre os
títulos
duplos,
sendo que um se aplica ao tema enquanto o outro se aplica ao elemento
alegórico), interdependentes e complementares. Um – regionalismo
- sustenta definições de cunho simbólico – gerais e universais
(sendo, dessa forma, também atemporal). O outro – regionalidade
– oportuniza uma reflexão acerca de todo um processo de
composição.
Benjamin afirma que
um entendimento filosófico sobre a mortificação das obras não
como “um despertar da consciência nas que estão vivas, mas uma
instalação do saber nas que estão mortas”, abre caminho para a
afirmação de que a “beleza que dura é um objeto do saber”.
Fazendo uma relação entre a filosofia e a ciência, Benjamin diz
que a “filosofia não deve duvidar do seu poder de despertar a
beleza adormecida na obra. (...) O objeto da crítica filosófica é
mostrar que a função da forma artística é converter em conteúdos
de verdade, de caráter filosófico, os conteúdos factuais, de
caráter histórico, que estão na raiz de todas as obras
significativas” (1984, p. 204).
2. PERÍODO DE
TRANSFORMAÇÃO
Em virtude do
progresso científico e cultural ocorrido no final do século XIX,
aconteceram significativas mudanças no Brasil. Essas mudanças
refletiram-se nas relações sociais oriundas do processo de
adaptação de uma realidade na qual as estruturas estavam
alicerçadas quase que exclusivamente sobre a exploração do setor
primário para uma economia que almejava a riqueza com o
desenvolvimento industrial.
Nesse processo, no
entanto, foi ignorado o fato de que as nações que serviram de
padrão para este desenvolvimento tecnológico realizaram uma
melhoria das condições de vida da sua população, tanto cultural
quanto economicamente, para depois implementarem as indústrias nos
moldes pretendidos pela estrutura macroeconômica. O Brasil, por sua
vez, avançou em apenas um dos aspectos realizados pelos países
ricos, modernizou sua infra-estrutura produtiva, mas manteve a
sociedade com sua base de exploração nos moldes coloniais.
Dessa forma, o país
entrou no circuito da indústria mundial, apresentando produtos mais
competitivos no mercado internacional; o café, por exemplo, ganhava
cada vez mais espaço no superávit da balança comercial. No
entanto, o Brasil também sofreu com a crise de 1929, agravada pela
falta de diversidade, ou seja, o país mantinha-se apenas como
exportador de produtos primários (como no período das relações
comerciais entre a Metrópole e a Colônia), sendo, na maioria das
vezes, relegado à condição de inferioridade nos contratos
estabelecidos no comércio internacional.
Internamente,
o país passava por uma fase conturbada na política; as
insatisfações decorrentes desse processo não planejado de
industrialização fizeram com que as camadas emergentes da sociedade
começassem a ocupar espaço, reivindicando seus direitos. O
trabalhador assalariado, mesmo sem garantias trabalhistas, começava
a se organizar tendo em vista a sua exclusão do processo produtivo,
quer no campo ou na cidade. No campo, a tecnologia e a mudança na
estrutura da produção primária para atender os mercados externos
tiravam o trabalho de muitas pessoas, enquanto que as cidades, por
sua vez, independentemente da oferta de emprego nas indústrias e
fábricas, sofriam com o êxodo rural, que mudava o perfil urbano da
periferia com a formação dos cinturões de miséria. E as
desigualdades regionais se apresentaram de maneira mais forte,
pois, se no século anterior a miséria
era
mantida afastada dos emergentes centros industriais (ou ainda podia
ser controlada), nos primeiros anos do século XX, ela veio a bater
na porta do poder, expondo a ferida de um progresso desordenado e sem
inclusão social.
Com as novas
necessidades para a população e novos interesses em jogo para os
governantes, as decisões políticas não ficaram exclusivamente
restritas aos grandes centros. Os meios de comunicação mais ágeis
e a imprensa ocupando cada vez mais espaço, inclusive como
influenciadora da opinião pública, também contribuíram para que
os debates políticos fossem levados para praticamente todo o país.
Mesmo sendo em grande parte uma imprensa fortemente partidária de
determinadas ideologias, a população começava a ter acesso através
dos jornais e rádios, de forma cada vez mais rápida e atualizada,
às notícias geradas nos centros de discussão política do país.
Apesar disso, as
dimensões do país e a força exercida pelas oligarquias das
diversas regiões brasileiras, contribuíram para a manutenção de
suas culturas e ideologias firmadas ao longo de séculos de
isolacionismo em relação ao núcleo do poder central. O Nordeste
continuava sofrendo com o desmantelamento dos engenhos e o seu
esgotamento devido à exploração sofrida durante o processo de
colonização; o Sul, em especial atenção o Rio Grande do Sul,
apesar de politizado e desenvolvido culturalmente, apresentava elites
que se alternavam no poder, guerrilhas internas e ideologias
partidárias marcando a história da região.
Os
conflitos no estado entre Chimangos3
e Maragatos4
estavam ativos desde a Revolução Federalista de 1893, somente vindo
a oportunizar uma trégua com a eleição de um candidato que, se não
era de consenso, pelo menos retirava do poder Borges de Medeiros5:
era Getúlio Vargas6.
Após a eleição de
Júlio Prestes para a presidência da república, as denúncias de
fraude começaram; o assassinato de João Pessoa, candidato a
vice-presidente na chapa de Vargas, agravou o clima do país,
culminando com a Revolução de 30, que conduziu Vargas ao poder.
O gaúcho abriu
espaço na política nacional ao romper com as estruturas dominantes.
Mas apenas para substituir por outra: a sua. A Era Vargas
representa um período conturbado e contraditório da história do
Brasil, pois apresenta um desenvolvimento econômico e industrial,
garantias trabalhistas e uma democratização iniciada com o direito
ao voto das mulheres ao lado de um retrocesso político com suas
tendências fascistas que culminaram com a ditadura do Estado Novo.
As formas de
repressão e as manifestações artísticas andaram lado a lado
durante esse período; é importante salientar que a cooptação de
intelectuais promoveu, segundo Nancy Baden (1999), uma espécie de
"justificativa" ao cerceamento das liberdades individuais e
uma limitação dos direitos civis por parte do governo. Essa
política visava, de maneira clara, sustentar o poder do ditador no
controle das manifestações artísticas e culturais, bem como da
produção intelectual brasileira, que se deslumbrava com o
desenvolvimento tecnológico, principalmente nas áreas da
petroquímica e da siderurgia.
O nacionalismo
sustentava e unia vertentes ideologicamente opostas em um ideal
maior: o Brasil. Aqueles que não acreditavam ou não partilhavam
dessa ideologia eram perseguidos, situação que se agravou durante o
Estado Novo. Mas não foi só durante o período ditatorial que a
democracia sofreu duros golpes, o autoritarismo estava presente mesmo
em tempos considerados "democráticos"; segundo Schwartzman
(1988), as estruturas de poder usavam de artifícios para mascarar a
realidade e impor sua vontade também em condições não explícitas
de repressão.
2.2.
Modernização, Modernidade ou Modernismo?
Antes de abordar a
produção literária desse período, é necessário evidenciar os
conceitos que serão empregados no que diz respeito a Modernização,
Modernidade
e
Modernismo.
A busca desesperada
dos países ditos subdesenvolvidos pela tecnologia que pudesse
aprimorar sua indústria levou a um processo de desagregação das
estruturas sociais a exemplo do que aconteceu na Europa com a
Revolução Industrial, ou seja, a modernização esteve distante dos
anseios da sociedade como um todo. Todo o processo que possibilitou
ao Brasil adentrar o industrializado século XX, também fez a maior
parte de sua população ficar relegada a condições de vida que
remontavam ao período feudal, quer sob a ótica do desenvolvimento
cultural, quer sob a inclusão de pessoas
abaixo
da linha de pobreza, ou seja, sem condições para prover sequer suas
necessidades básicas de sobrevivência.
A noção de
Modernidade, segundo Zygmunt Bauman (1999), é marcada pela
ambivalência na relação do homem com o mundo, pois o indivíduo
encontra-se diante de uma realidade diferente da vivida em outras
épocas. A diferença está na forma de encarar o mundo, ou seja, na
visão que ele possui da realidade que o cerca; enquanto que o homem
da Antigüidade Clássica e da Idade Média buscava o seu lugar no
mundo, pois entendia este como sendo pronto e acabado7,
o homem moderno, nessa concepção de Modernidade, enfrenta a
possibilidade de questionar sobre que mundo lhe é apresentado e qual
dos seus "eus" deve interagir com esse(s) mundo(s)8.
A produção
cultural, principalmente no século XX, tende a refletir essa
ambivalência e esse questionamento sobre a realidade. Ainda há a
presença de ideologias que mantém o homem em suas estruturas
cognitivas, levando-o a buscar seu lugar no mundo, mesmo este não
estando preparado para recebê-lo, ao contrário, apresentando-se
pronto para alijá-lo da sociedade organizada. Entretanto, cada vez
mais esse questionamento busca espaço e a insatisfação do homem
com a sociedade é um sintoma dessa inconformidade, não é mais
suficiente reproduzir a sociedade, é necessário transformá-la
constantemente para adaptá-la às novas exigências humanas.
Para o Modernismo há
duas possibilidades de interpretação: a primeira caracterizada por
sua proximidade com o ideal de modernidade, no qual os avanços
tecnológicos e culturais deveriam provocar o desenvolvimento humano
da sociedade como um todo. A segunda interpretação, relacionada
com o processo de exclusão, relega a produção literária a um
período, classificando-a sem se preocupar com o papel que desempenha
na crítica às relações de poder. Essa noção de Modernismo fez
com que se tivesse a impressão de controle das manifestações
culturais e que estas não eram, ao menos em parte, resultantes
destas mesmas estruturas sociais que buscavam novas formas de
denúncia.
Ao expor certas
condições de vida em sociedade, os poetas e escritores percebiam e
atingiam o leitor com uma carga de questionamentos muito perigosos
para a classe dominante. A Literatura, assim, necessitava ser
"separada" do leitor o máximo possível, sendo colocadas
barreiras classificatórias e catalogadoras, uma leitura superficial,
distante e alienante. No entanto, quando tal período é abordado de
forma diferente, isto é, sem o caráter classificatório, pode-se
perceber as inovações que a produção literária trouxe para o
desenvolvimento humano.
3. JOÃO SIMÕES
LOPES NETO E GRACILIANO RAMOS
João Simões Lopes
Neto foi o escritor que, através da representação do folclore
gaúcho, conseguiu aproximar os leitores mais cultos da produção
popular. Utilizando uma linguagem tipicamente regionalista e criando
personagens identificadas com o tipo humano do gaúcho, chegando,
várias vezes, a serem tratadas como pessoas inseridas no contexto
histórico das narrativas, Lopes Neto extrapola o limite do real e do
imaginário.
Blau Nunes e
Romualdo são personagens que instigam pela problemática que aponta
para a sua real origem e existência. Mesmo havendo uma forte
inspiração do escritor em pessoas de sua convivência, ele próprio
procura desfazer (ao menos em parte) as relações e especulações
sobre as origens
de suas personagens quando afirma que não se pode ler um conto ou
causo
na sua íntegra, tal qual foi escrito por ele. Deve-se, ao
contrário, acrescentar um ponto a cada momento, a cada situação
narrada, criando um novo conto, guardando apenas a essência do
original.
Blau, o guerreiro da
juventude e o sábio na velhice, sabedoria da terra, das histórias
de vida que são, em muito, histórias de todo um povo representadas
em uma única personagem, traz à tona o mito do gaúcho em sua
plenitude: o herói, o guerreiro, a força e a valentia, a honra e o
caráter. Mesmo fazendo toda essa representação, a personagem
também marca um novo passo na realidade cultural do Rio Grande do
Sul ao se definir como uma pessoa herdeira de toda essa carga de
valores e de identidade.
Essa herança de
valores é muito complexa para ser assimilada por um ser humano que é
falho e limitado. Dessa forma, a personagem também carrega consigo
as limitações humanas para ser, obviamente, aceito pelo imaginário
coletivo como sendo a representação não do
gaúcho,
mas sim de um
gaúcho.
Isso faz com que ocorra uma proximidade do até então
inquestionável mito com os problemas comuns do cotidiano. E, em se
tratando da realidade rural, a labuta e as relações sociais de
dominação e submissão impostas pelo sistema de classes sociais se
faz presente como no conto Trezentas
onças.
Assim, Blau é a
representação mais popular do monarca, mas de um monarca inserido
em uma realidade social em que só era dono da sua maneira de pensar,
pois o próprio herói aparece como o Chasque
do Imperador,
ou seja, ao ser chamado para ser homem de confiança do imperador,
Blau, ao mesmo tempo que se iguala ao governante enquanto homem,
desmitificando a figura idealizada da majestade, rebaixa o tão
consagrado mito do gaúcho ao nível do homem que é. Pois, por mais
bravo e nobre que seja, não deixa de ser um cabo do exército
imperial submisso às ordens do imperador.
Não bastasse a
materialização em um tipo humano do mito do gaúcho, os Casos
do Romualdo
apresentam uma outra figura humana: vivo, ladino, esperto e, para não
chamar de mentiroso, exagerado em suas estórias, nas quais sempre
aparece como herói maior. O humor presente nos casos narrados pelo
Romualdo e a sua impossibilidade de terem ocorrido, também
contribuíram para a popularização do gaúcho e a conseqüente
abertura de espaços para que o mito (até então inatingível)
pudesse ser alcançado, comparado e questionado.
Lopes Neto não pode
ser criticado por manter vivo o mito do gaúcho, sua obra, tanto
ficcional quanto de reprodução folclórica, abriu espaço para a
crítica e aproximou as elites intelectualizadas da realidade dos
causos de galpões, do linguajar e da forma de viver e tratar das
coisas cotidianas à maneira do peão humilde e simples. Sabe-se que
esse foi o primeiro passo para que a cultura gaúcha pudesse começar
o seu caminho em busca da sua identidade, identidade tipicamente
campeira e rural que, com a modernização, o conseqüente
crescimento urbano e o êxodo rural se viu novamente questionada.
É possível a
comparação com Graciliano Ramos, escritor nordestino, em Alexandre
e outros heróis,
em função do riso evidenciado nos causos
simoneanos. Na obra, Alexandre é um vaqueiro de pequenas posses e
contador de histórias, que tem sempre em sua casa uma pequena
platéia que ouve os contos fantásticos supostamente vividos por
ele. As histórias ocorrem no sertão nordestino e apresenta um
narrador em terceira pessoa, que depois cede a narrativa a Alexandre,
que então passa a narrar em primeira pessoa.
O autor sempre
“soube preservar a autenticidade da ambientação geográfica e
cultural onde se desenvolvem seus romances, que era o mundo de suas
origens e, como dizia, o único sobre o qual poderia falar.”
(VIANNA, 1997, p. 92).
É importante considerar, na obra
de Graciliano Ramos, que o social não prevalece sobre o psicológico,
embora não saia diminuído. O que ela investiga é o homem nas suas
ligações com uma determinada matriz regional, mas focalizado
principalmente no drama irreproduzível de cada destino. Com isso, o
romancista confere uma dimensão de universalidade à pesquisa
regionalista em sub-regiões nordestinas, superando a atitude do
simples depoimento ou relato, tão freqüente quanto característico
de muitos que escreveram sobre elas. O expositivo cede lugar à
síntese. (CANDIDO & CASTELLO, 1983, p. 290)
A partir do contexto
sócio-político-econômico do Brasil na década de 30, surge uma
prosa regionalista que apontava os problemas sociais da época.
“Escritor regionalista que foi, Graciliano narrou a realidade de
uma determinada região e as injustiças sofridas pelas camadas
desprestigiadas” (BARRETO, 2008, p. 583).
Desse confronto
entre uma visão ácida e melancólica, dotada de um tom de denúncia
sustentado por um sentimento de perda que faz a identidade sucumbir,
com o questionamento da noção de progresso9,
apontando a decadência10.
Assim, através do riso, do humor presente nas personagens e nos
enredos comuns às obras dos dois escritores é possível se observar
um rompimento com certos paradigmas e visões de mundo.
A derrota, a
angústia e a entrega diante de algo próximo da compreensão da
maioria das pessoas (problemas econômicos, amorosos), distante dos
grandes
problemas da humanidade ou de projetos nacionalistas que tornam –
de acordo com o historicismo – os homens melhores, podem ser
observadas no seguinte fragmento do conto Trezentas
onças:
Então, senti frio dentro da
alma... o meu patrão ia dizer que eu havia roubado! roubado!... Pois
então eu ia lá perder as onças!... Qual! Ladrão, ladrão, é que
era!... E logo uma tenção ruim entrou-me nos miolos: eu devia
matar-me, para não sofrer a vergonha daquela suposição. É; era o
que eu devia fazer: matar-me... e já, aqui mesmo! Tirei a pistola do
cinto; amartilhei o gatilho... benzi-me, e encostei no ouvido o cano,
grosso e fino, carregado de bala...(NETO, 1996, p. 17).
Ou ainda, a
reflexão sobre o sentimento de perda da coletividade, do seu projeto
de construção de uma formação humanista, no qual os homens dão
um valor maior à vida, que pode ser percebida nesse momento – o da
eminência da perda – no trecho de Angústia,
de Graciliano Ramos:
Às vezes, horas depois de entrar
na vila a rede coberta de vermelho, uma tropa de cachimbos invadia a
praça, conduzindo o criminoso amarrado. Os cachimbos falavam alto e
mostravam, cheios de suficiência facões e lazarinas; o matador
tinha os braços presos, da barriga para cima estava todo embirado de
cordas. A gente se alvoroçava. Os tabuleiros de gamão ficavam
abandonados nos tamboretes. (...) E o criminoso, pisando com força,
atravessava o quadro, a cabeça erguida, a testa cortada de rugas, o
olhar feroz, trombudo, impando de orgulho. Algumas horas depois
estaria acocorado a um canto da prisão, sem vontade, como seu Ivo.
Mas ali, diante dos curiosos que se empurravam, representava o papel
de bicho: franzia as ventas, mordia os beiços, dava puxões na corda
e grunhia. Olhavam para ele com admiração e os cachimbos se
envaideciam por havê-lo pegado vivo. (...) Um ladrão de cavalos
seria maltratado, agüentaria facão, de joelhos, nu da barriga para
cima, um soldado segurando-lhe o braço direito e batendo-o no peito,
outro segurando o braço esquerdo e batendo nas costas. Depois os
presos se aproximariam, camaradas, de repente lhe afastariam as
pernas. O corpo cairia na pedra negra, suja de escarros, sangue, pus
e lama. O cipó de boi chiaria no ar, cortaria o lombo descoberto.
Mas isso era com os ladrões, os vagabundos, os autores de delitos
miúdos. Um criminoso de morte era diferente, merecia consideração.
(RAMOS, 1994, p. 148-149).
Da melancolia ao
riso se tem esse questionamento da formação cultural e dos
dogmatismos de uma sociedade. A melancolia carrega um sentimento de
perda, de consciência sobre as contradições e barbáries
existentes no processo de formação cultural ao longo da história,
visto que “nunca houve um monumento da cultura que não fosse
também um monumento da barbárie. E, assim como a cultura não é
isenta de barbárie, não o é, tampouco, o processo de transmissão
da cultura” (BENJAMIN, 1985, p. 225). O riso, por sua vez, pode ser
entendido como uma superação, como um questionamento aos dogmas e
como uma possibilidade de reiniciar reiteradamente o progresso
humano, a consciência sobre suas limitações e pobrezas.
Sergio Paulo Rouanet
elabora uma relação de interdependência entre esses dois “estados
de espírito”, apontando elementos que podem auxiliar a análise e
interpretação literárias:
Tristam é um melancólico,
assombrado pelo fantasma da transitoriedade, do tempo que foge, da
morte. Não surpreende, assim, que um dos livros mais lidos (e
plagiados) por Sterne seja a Anatomia
da melancolia, de
Robert Burton. Mas o narrador insere invariavelmente essas reflexões
em num contexto em que elas se tornam cômicas. Regride, assim, à
tradição da Antiguidade, segundo a qual o filósofo Demócrito
teria dito a Hipócrates que o riso era o melhor antídoto contra a
melancolia. Não há dúvida, também, de que ele absorveu a lição
de Rabelais, que escreveu no prólogo de Gargatua
que não há como o riso para espantar o luto. (ROUANET, 2007, p.
202).
O riso, o exagero
presente nos contos de Graciliano Ramos e João Simões Lopes Neto
apontam para essa possibilidade de leitura. Há uma diferença
estrutural entre eles que merece destaque: enquanto Lopes Neto
estabelece um diálogo com o leitor, como se esse estivesse ouvindo a
história, exigindo a sua entrada no universo mediato da narrativa
(fazendo, inclusive, com que o leitor tenha a responsabilidade de
aceitar ou não os fatos narrados e realizar a crítica acerca dos
mesmos), Graciliano Ramos cria personagens que dialogam com o
personagem narrador, fazendo a mediação crítica no contexto da
obra (destaque deve ser dado ao cego que vê melhor do que todos os
demais).
A relação entre
esses escritores está muito mais próxima do que muitos supõem.
Ambos afirmam que essas histórias foram recolhidas da cultura
popular, como Simões Lopes Neto alerta o leitor logo no início de
Casos
do Romualdo:
“Entendamo-nos desde já: É possível (o autor ignora-o), que haja
coletânea semelhante, anterior, nacional, se existe, para melhor
bem, que supere a atual no conteúdo e na forma”. (NETO, 1997, p.
23).
A semelhança de
certas histórias narradas sustentadas na cor local gaúcha e
nordestina chama deveras a atenção e, mais do que apontar relações
de produção entre os dois autores, estimula uma reflexão sobre
como essas narrativas se originaram e se estabeleceram em
regionalidades tão distintas. A publicação dos causos
do Romualdo teve início no jornal pelotense Correio
Mercantil,
a partir de 1º de junho de 1914 (Vide Anexo 1), desdobrando-se ao
longo de vinte uma edições diárias, segundo aponta Carlos Reverbel
(In: NETO, 1997), responsável pela primeira edição em livro dos
Casos, datada de 1952. A apresentação de Alexandre e Cesária –
Alexandre
e outros heróis -
data de 10 de julho de 1938, conforme comenta Osman Lins (In: RAMOS,
1994). É possível perceber essa relação através da seguinte
citação:
Ia principiando a escurecer,
mas não escureceu. Enquanto o sol se punha, a lua cheia aparecia,
uma lua enorme e vermelha, de cara ruim, dessas que anunciam
infelicidade. (...) Havia no campo uma tristeza de morte. A lua
crescia muito limpa, tinha lambido todas as nuvens, estava com
intenção de ocupar metade do céu. (...) Puxei a rédea, parei,
ouvi um barulho de guizo.
É a cobra chamada “viradeira”, porque qualquer animal mordido
por ela vira-se logo de papo para o ar, estrebuchando ou logo morto.
É cem vezes mais venenosa que a cascavel. (...) Foi só quando
desafivelei o loro com o estribo, e fazendo deste arma, desferi uma
pancada mestra sobre a cabeça da “viradeira”. Porém,
ligeiríssima, a cobra ainda atirou um bote ao estribo, que era de
prata, e tiniu, com o choque da dentada. Porém, matei-a. (...)
Apresilhei novamente o estribo. Montei-me
novamente. Comecei a
sentir o pé apertado no estribo e o cavalo meio derreado, como se
trouxesse todo o peso a um lado. Parei para examinar a esquisitice: o
estribo estava grande que era um despotismo, sim senhores. Mal pude
movê-lo. (...) Convenci-me, porém, que os dentes tinham ferido o
estribo e deixado lá o veneno que existia no corpo dela.11
Cabe salientar que
este trabalho apresenta apenas um pequeno levantamento de
problemáticas a serem discutidas. Partindo da necessidade do
conceito de regionalidade ser pensado como uma categoria de teoria
literária diferente do conceito de regionalismo, pretende-se iniciar
um processo de discussão que vislumbra a produção regional sob um
enfoque mais dinâmico, evitando uma subordinação excessiva a
elementos simplificadores, tais como a “cor local”.
Assim, as
influências literárias e culturais e o processo de formação
histórico-social do Brasil e das diversas literaturas regionais que
o compõem, necessitam, basicamente, serem refletidas à luz de uma
abordagem que tente levar em conta vários desses aspectos e suas
intertextualidades. As referências às Aventuras
do Barão de Münchhausen,
do alemão Gottfried Ausgust Buerger, que se constitui em relatos de
uma saga que chamam atenção para características psicológicas
invariáveis do ser humano e exprime certos padrões universais de
comportamento, encontram, nos autores gaúcho e nordestino
brasileiros, uma outra dimensão. Dimensão esta que precisa ser mais
aprofundada, tendo em vista a indagação principal de como
regionalidades tão distintas no contexto da produção literária
brasileira podem se aproximar de maneira tão evidente.
Essa problemática
que, ao contrário de encerrar este trabalho, apenas evidencia uma
discussão maior e importante, pois trata de todo um processo
reflexivo acerca da produção cultural. João Cláudio Arendt (2010)
destaca que o termo universal
aparece quase com a mesma frequência que a palavra regional.
Tal situação confronta exatamente o status e a valorização de
conceitos envolvidos em um momento histórico no qual a literatura
ainda é vista como submissa a modelos e valores preestabelecidos.
Arendt afirma, tomando por base os estudos de Ligia Chiappini, de que
“dever-se-ia não distinguir os tipos de regionalismo existentes,
mas fazer a distinção estética entre obras boas ou más, tendo
como foco o efeito que elas podem ter sobre os leitores” (2010, p.
02). Destaca, ainda, que a necessária discussão do(s)
significado(s) das categorias região, regionalismo, regionalidade e
literatura regional não avançou na mesma proporção que a emissão
de juízos de valor, visto que a apropriação e o entendimento
desses conceitos se faz a partir de uma visão que ignora a cultura
“como espaço histórica e culturalmente construído por diferentes
formas de representação” (2010, p. 02).
Ao criticar a
utilização da categoria universal para medir qualitativamente a
literatura regional brasileira, destacando as implicações
ideológicas existentes nesse processo, Arendt também oportuniza a
relação de uma outra forma de leitura, ou seja, a perspectiva
alegórica voltada para o termo regionalidade
em complementação – não em oposição – ao conceito simbólico
que abrange mais do que a noção fechada de regionalismo,
mas incorpora a questão ideológica em sua historicidade. Ler a
produção cultural em seu espaço regional é mais do que
conceituá-la aprioristicamente; é buscar, incansavelmente e
admitindo a incompletude e a falibilidade desse ato, uma compreensão
do processo de formação cultural.
4.
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Professor Adjunto da Universidade Federal Pelotas - UFPel. Líder
do Grupo de Pesquisa CNPq ÍCARO (UFMS) e pesquisador
dos Grupos de Pesquisa CNPq - Literatura e Autoritarismo
(UFSM), e - Formação Cultural, Hermenêutica e
Educação (UFSM). E-mail: jlourique@pq.cnpq.br.
ADORNO, Theodor. Negative Dialectics. New
York: Continuum, 1983.
3
Denominação dada aos integrantes do Partido Republicano
Riograndense (PRR).
4
Denominação dada aos integrantes do Partido Federalista
Riograndense (PFR).
5
Governador do Rio Grande do Sul que se manteve no poder por mais de
duas décadas tendo, inclusive, denúncias (muitas comprovadas) de
manipulação das urnas para garantir suas reeleições.
6
Com a pacificação política, forma-se a Frente Única Gaúcha,
visando a participação do Rio Grande do Sul na política nacional
e apoio à candidatura de Vargas, quando da formação da Aliança
Liberal, em 1929.
7
Esta visão do homem sobre o mundo, bem como sua relação com a
sociedade é denominada de "cognitiva", possui uma relação
com a metafísica no que tange a totalidade unificada. (Bauman:
1999).
8
Para essa transformação do pensamento humano em relação à
realidade, a definição de "pós-cognitiva" evidencia
esse processo de ruptura com a forma de pensamento anterior,
perdendo a visão universal de totalidade e o senso de que as coisas
são integradas, partindo para o sentido que o ser humano dá a
elas, pois estão (todas) amplas e flexíveis demais. (Bauman:
1999).
9
Segundo Adorno (1995), “O conceito de progresso, mais ainda que
outros, desfaz-se com a especificação daquilo que propriamente se
quer dizer com ele: o que progride e o que não progride. (...) Seu
uso pedante defrauda apenas aquilo que promete: resposta à dúvida
e esperança de que finalmente as coisas melhorem, de que, enfim, as
pessoas possam tomar alento.” (p. 37-38).
10
Entende-se, assim, que a decadência é o primeiro passo para que o
progresso, não como teoria arrogante e dogmática acerca de valores
estabelecidos e noções gerais acerca da formação cultural, de
fato se estabeleça como um repensar, um “sair do encantamento –
também o do progresso, ele mesmo natureza – à medida em que a
humanidade toma consciência de sua própria naturalidade, e pôr
fim à dominação que exerce sobre a natureza e, através da qual,
a da natureza se prolonga. Neste sentido, poder-se-ia dizer que o
progresso acontece ali onde ele termina.” (ADORNO, 1995, p. 47).
11
Fragmentos de dois contos/causos das obras de João Simões Lopes
Neto (Três Cobras. In: Casos do Romualdo) e
Graciliano Ramos (O Estribo de Prata. In: Alexandre e outros
heróis. – grifado em itálico).
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