sábado, 30 de agosto de 2014

Identidade, Regionalismo e Regionalidade em João Simões Lopes Neto e Graciliano Ramos: diálogos sobre formação cultural


OURIQUE, J. L. P. Identidade, Regionalismo e Regionalidade em João Simões Lopes Neto e Graciliano Ramos: diálogos sobre formação cultural. In: SIMÕES, Maria João. (Org.). Imagotipos literários: processos de (des)configuração na imagologia literária. 1ed.Coimbra: Centro de Literatura Portuguesa, 2011, v. 1, p. 77-100.



Identidade, Regionalismo e Regionalidade em João Simões Lopes Neto e Graciliano Ramos:
diálogos sobre formação cultural

OURIQUE, João Luis Pereira1


Este trabalho visa refletir acerca da produção literária do escritor gaúcho João Simões Lopes Neto, relacionando com parte da produção literária de outro grande nome da literatura brasileira, Graciliano Ramos, que também adotou a temática regional. Partindo da discussão sobre a questão da regionalidade, pretende-se apontar para possibilidades e variantes interpretativas com sustentação da Teoria Crítica da Sociedade, fundamentada a partir dos pensadores da Escola de Frankfurt, discutindo as possíveis contradições sobre temas relacionados com a identidade e formação cultural, sob a perspectiva da Literatura Comparada.
A discussão que permeia esse trabalho se insere em uma crítica às visões autoritárias que sustentam e legitimam as noções ligadas ao regionalismo literário e aos estereótipos resultantes de leituras parciais desconexas de uma noção mais ampla de formação cultural. Dessa forma, abordar parte da obra dos escritores gaúcho e nordestino à luz da perspectiva alegórica apresentada por Walter Benjamin, em Origem do Drama Barroco Alemão (1984), evidencia que o conceito de regionalismo se relaciona com um universo simbólico atemporal, enquanto regionalidade se apresenta como uma forma de leitura, como uma figura tardia, baseada em conflitos culturais. Assim, comparar João Simões Lopes Neto com Graciliano Ramos apresenta uma possibilidade de reflexão acerca de uma sociedade em transformação, na qual mitos estavam sendo discutidos à luz de uma nova ordem social sem, no entanto, romperem totalmente com os valores tradicionais.




1. REGIONALISMO E REGIONALIDADE

Segundo o dicionário Aurélio, o verbete regionalismo é uma “doutrina que incrementa os agrupamentos regionais”; “sistema ou partido dos que defendem os interesses regionais”; “locução peculiar a uma região, ou a regiões”; “caráter da literatura que se baseia em costumes e tradições regionais”.
Para o dicionário Houaiss, regionalismo é “caráter de qualquer obra (música, literatura, teatro etc.) que se baseia em ou reflete ou expressa costumes ou tradições regionais”; “tendência a só considerar os interesses particulares da região em que se habita”; “doutrina política e social que favorece interesses regionais”; “palavra ou locução (dialetismo vocabular) ou acepção (dialetismo semântico) privativa de determinada região dentro do território onde se fala a língua”; “caráter do texto literário que se baseia em costumes e tradições regionais, e que tem como uma de suas características o uso de linguagens locais”.
De acordo com historiadores e críticos literários como Antonio Candido (1964), Alfredo Bosi (1989), João Luiz Lafetá (2004), o regionalismo brasileiro é uma corrente literária que surge em meados do século XIX, nas obras de José de Alencar, de Bernardo de Guimarães, de Alfredo D’Escragnolle Taunay e de Franklin Távora no período do romantismo brasileiro.
Enfatizam, porém, que é no século XX, entre os anos de 1930 e 1940, que ocorre um momento de maior expressão, principalmente com a produção do chamado ciclo do romance nordestino, cujos principais escritores regionalistas são José Américo de Almeida (A bagaceira, 1928), Rachel de Queiroz (O Quinze, 1930), Jorge Amado (Cacau, 1933), José Lins do Rego (Menino de engenho, 1932) e Graciliano Ramos (Vidas secas, 1938). (VIANNA, 1997). É importante destacar que tal situação não surgiu de forma isolada, visto que se relaciona diretamente com o período que ficou conhecido como pré-modernismo (transição entre o parnasianismo e o simbolismo e o movimento modernista). Esse período ao mesmo tempo em que sofreu influência das vanguardas européias, também consolidou uma visão acerca dos diversos contextos regionais do Brasil e no qual se insere a obra de João Simões Lopes Neto.
Segundo Vianna (1997, p. 121), a principal característica do regionalismo tradicional é “o apelo nostálgico a um passado rural cuja perda se lamenta e cujos aspectos são descritos minuciosamente, para recompor o antigo mundo do campo que se quer contrapor à perda das tradições da vida na cidade”.
Em entrevista para a revista LivreMercado, Daniel Lima define regionalidade como

um conjunto amplo de informação e de análise que transcende determinado Município ou determinada região, por mais que o foco regional esteja centralmente voltado para determinado ponto. Regionalidade é ir fundo num determinado território geográfico sem deixar escapar implicações nacionais e internacionais que atingem esse mesmo território nos mais diferentes campos de informação econômica, financeira, social e gerencial, tanto pública quanto privada. Regionalidade não é a cauda localizada da globalização, como alguns tentam vender. Regionalidade é a essência da globalização. Globalização é a soma de regionalidades, é o corpo, a alma e o espírito.


É importante comentar a perspectiva de José Clemente Pozenato (2008) quando discute a diferença principal entre regionalidade e regionalismo:


Por sua proximidade semântica, estes [...] termos podem ser facilmente confundidos. Em especial, isto tem acontecido com as palavras regionalidade e regionalismo. Ao menos no campo da literatura brasileira, o conceito de regionalismo tem sido utilizado para identificar e descrever todas as relações do fato literário com uma dada região. Penso que este significado deve ser reservado para o conceito de regionalidade. O regionalismo pode ser identificado como uma espécie particular de relações de regionalidade: aquelas em que o objetivo é o de criar um espaço – simbólico, bem entendido – com base no critério da exclusão, ou pelo menos da exclusividade. Esse critério se manifesta, no caso da produção literária, pelo uso de um dialeto, quando não de uma língua, de estrita circulação interna.


Logo, é possível observar, genericamente, que o regionalismo literário se sobressai quando enfoca determinada região brasileira, visando retratá-la de maneira profunda ou de modo superficial. A regionalidade, porém, vai além desta visão, pois para a regionalidade é a consciência coletiva que une a população de uma determinada região, em torno de sua cultura, de seus sentimentos e de seus problemas; permitido e exigindo uma leitura comparatista entre essas diversas consciências.
Vianna (1997, p. 121) apresenta regionalismo como uma

corrente literária que se manifesta na literatura brasileira desde o Romantismo e cujo momento de maior expressão encontra-se entre os anos de 1930 e 1940, principalmente com a produção do chamado Ciclo do romance nordestino, cujo principais expoentes são José Américo de Almeida (A bagaceira, 1928), Rachel de Queiroz (O Quinze, 1930), Jorge Amado (Cacau, 1933), José Lins do Rego (Menino de engenho, 1932) e Graciliano Ramos (Vidas secas, 1938). A principal característica do regionalismo tradicional é o apelo nostálgico a um passado rural cuja perda se lamenta e cujos aspectos são descritos minuciosamente, para recompor o antigo mundo do campo que se quer contrapor à perda das tradições da vida na cidade.

Discutindo sobre a questão da regionalidade, José Auricchio Júnior (2007), por sua vez, apresenta a seguinte definição:

como o conjunto de propriedades e circunstâncias que distinguem um espaço e que permitem sua comparação com outras regiões; consciência coletiva que une os habitantes de uma determinada região em torno de sua cultura, seus sentimentos e problemas; formação social que surge da articulação de esforços conjuntos das autoridades públicas, dos empresários, dos representantes de segmentos da sociedade civil e dos representantes de outras organizações no espaço da região, que pode ser geográfico, administrativo, econômico, social e cultural.

Dessa forma, ao pensar Regionalidade ao invés de regionalismo, há o interesse em articular uma reflexão não restrita a uma busca identitária que, segundo Zilá Bernd, pode se caracterizar em etnocentrismo, visto se tratar “de um conceito traiçoeiro na medida em que ele pode transformar-se em um conceito de circunscrição da realidade a um único quadro de referências” (BERND, 1992, p. 16). Essas considerações não procuram romper com o conceito de identidade ou com o reconhecimento do valor do regionalismo como responsável por “resguardar um importante conjunto de valores literários e de tradições locais” (RAMA, 2001, p. 210-211). Todavia, isso não pode ser empecilho para a reflexão crítica, e questões como identidade regional, valores culturais e tradição necessitam ser tratadas à luz de suas contradições. Segundo Rama, o confronto da tradição com o novo, do regional com o universal:

gera em primeiro lugar uma retirada defensiva, um mergulho protetor no seio da cultura regional e materna, com um premente apelo a suas fontes nutritivas, mas também com o desejo de reexaminar de forma crítica suas condições peculiares, as forças de que dispõe, a viabilidade dos valores aceitos sem análise, a autenticidade de seus recursos expressivos. (RAMA, 2001, p. 214).

Analisar esse recuo, observar como essa retirada de fato questiona seus valores é o desafio da leitura de textos que dialogam a partir do referencial de uma identidade em transformação, mas que procura uma estabilidade consoladora do espírito. O paradoxo que pode emergir é o da não percepção das inviabilidades que estão presentes em qualquer manifestação literária, estruturando-se, assim, em uma retirada estratégica com o fim único de fortalecer as ideologias. O clima de tensão deve ser mantido para que a reflexão aconteça em nome de ideologias mais humanitárias, evitando, com isso, as visões totalitárias e os modelos literários que atuam – não raras vezes - como elementos reducionistas das diversas culturas que permeiam a sociedade.
É possível abordar uma noção de regionalidade, tendo em vista que o termo regionalismo se distancia entre várias possibilidades de entendimento. Conforme o estudo de Lígia Chiappini (2008), o regionalismo literário possui estudos e abordagens conceituais claras e coerentes. Segundo a pesquisadora:

Regionalismo na literatura, como tema de estudo, constitui um desafio teórico, na medida em que defronta o estudioso com questões das mais candentes da teoria, da crítica e da história literárias, tais como os problemas do valor, da relação entre arte a sociedade; das relações da literatura com as ciências humanas; das literaturas canônicas e não-canônicas e das fronteiras movediças entre clãs. Estudar regionalismo hoje nos leva a constatar seu caráter universal e moderno. Surgindo como reação ao iluminismo e à centralização do Estado-nação, hoje se reatualiza como reação à chamada globalização. Se, para um pensamento não-dialético, a chamada “aldeia global” suplantou definitivamente a “aldeia” e tudo o que dela fale e por ela se interesse, a dialética nos faz considerar que a questão regional e a defesa das particularidades locais hoje se repõem com força, quanto mais não seja como reação aos riscos de homogeneidade cultural, à destruição da natureza e às dificuldades da vida e trabalho no “paraíso neoliberal”.


Uma dessas possibilidades de entendimento que o termo regionalismo não contempla claramente é a incorporação das contradições; admitir a falência da cultura como um todo e a mera tentativa do estabelecimento de verdades precárias, tão necessárias para a construção de ideologias que permitem ao indivíduo transitar em espaços e momentos culturais paradoxais, precisa ser considerado. Regionalidade não se opõe a regionalismo – quer seja este último percebido do ponto de vista do viés tradicionalista ou da crítica literária – mas incorpora as contradições da qual faz parte, tentando refletir sobre esse processo. Chiappini comenta a tendência mutável e de trânsito dessa produção regionalista, destacando que

A função da crítica diante de obras que se enquadram na tendência regionalista é, por isso, indagar da função que a regionalidade exerce nelas; e perguntar como a arte da palavra faz com que, através de um material que parece confiná-las ao beco a que se referem, algumas alcancem a dimensão mais geral da beleza e, com ela, a possibilidade de falar a leitores de outros becos de espaço e tempo, permanecendo, enquanto outras (mesmo muitas que se querem imediatamente cosmopolitas, urbanas e modernas) se perdem para uma história permanente da leitura.

Nas Passagens, Walter Benjamin aponta para uma “pequena proposta metodológica para a dialética da história cultural” na qual estabelece uma relação muito próxima da dialética negativa2 de Theodor Adorno. Segundo a perspectiva do filósofo frankfurtiano, é necessário adotar uma postura dialeticamente negativa para que as contradições possam ser percebidas; acrescenta ainda que as contradições não existem simplesmente na sociedade, elas surgem do processo de observação, dos enfrentamentos com valores não questionados até o momento.

É muito fácil estabelecer dicotomias para cada época, em seus diferentes “domínios”, segundo determinados pontos de vista: de um modo a ter, de um lado, a parte “fértil”, “auspiciosa”, “viva” e “positiva”, e de outro, a parte inútil, atrasada e morta de cada época. Com efeito, os contornos da parte positiva só se realçarão nitidamente se ela for devidamente delimitada em relação à parte negativa. Toda negação, por sua vez, tem o seu valor apenas como pano de fundo para os contornos do vivo, do positivo. Por isso, é de importância decisiva aplicar novamente uma divisão a esta parte negativa, inicialmente excluída, de modo que a mudança de ângulo de visão (mas não de critérios!) faça surgir novamente, nela também, um elemento positivo e diferente daquele anteriormente especificado. E assim por diante ad infinitum, até que todo o passado seja recolhido no presente em uma apocatástase histórica. (BENJAMIN, 2006, p. 501).

E é assim que a literatura regional necessita ser percebida: do confronto dos seus valores com o processo de construção de novas identidades e projetos sócio-culturais até o devido reconhecimento de que qualquer produção literária compõe a história cultural. Dessa forma, a tensão que o regionalismo estabelece entre tema e linguagem deve ser entendida e percebida de maneira clara dentro do contexto de expressão e representação cultural, porque “se torna um instrumento poderoso de transformação da língua e de revelação e autoconsciência do país; mas pode ser também fator de artificialidade na língua e de alienação no plano de conhecimento do país” (CANDIDO, 2002, p. 87).
Essas reflexões apontam para o entendimento de que regionalidade é, antes de tudo, uma forma de leitura, e não de escrita, assim como a Alegoria é entendida por Walter Benjamin em sua relação com o símbolo. O termo se torna indissociável do conceito precário de regionalismo, mas evidenciando o aspecto regional em primeira instância. Caracterizam-se, assim, lado a lado, como conceitos duplos (a exemplo da definição de Walter Benjamin – 1984 - sobre os títulos duplos, sendo que um se aplica ao tema enquanto o outro se aplica ao elemento alegórico), interdependentes e complementares. Um – regionalismo - sustenta definições de cunho simbólico – gerais e universais (sendo, dessa forma, também atemporal). O outro – regionalidade – oportuniza uma reflexão acerca de todo um processo de composição.
Benjamin afirma que um entendimento filosófico sobre a mortificação das obras não como “um despertar da consciência nas que estão vivas, mas uma instalação do saber nas que estão mortas”, abre caminho para a afirmação de que a “beleza que dura é um objeto do saber”. Fazendo uma relação entre a filosofia e a ciência, Benjamin diz que a “filosofia não deve duvidar do seu poder de despertar a beleza adormecida na obra. (...) O objeto da crítica filosófica é mostrar que a função da forma artística é converter em conteúdos de verdade, de caráter filosófico, os conteúdos factuais, de caráter histórico, que estão na raiz de todas as obras significativas” (1984, p. 204).

2. PERÍODO DE TRANSFORMAÇÃO

Em virtude do progresso científico e cultural ocorrido no final do século XIX, aconteceram significativas mudanças no Brasil. Essas mudanças refletiram-se nas relações sociais oriundas do processo de adaptação de uma realidade na qual as estruturas estavam alicerçadas quase que exclusivamente sobre a exploração do setor primário para uma economia que almejava a riqueza com o desenvolvimento industrial.
Nesse processo, no entanto, foi ignorado o fato de que as nações que serviram de padrão para este desenvolvimento tecnológico realizaram uma melhoria das condições de vida da sua população, tanto cultural quanto economicamente, para depois implementarem as indústrias nos moldes pretendidos pela estrutura macroeconômica. O Brasil, por sua vez, avançou em apenas um dos aspectos realizados pelos países ricos, modernizou sua infra-estrutura produtiva, mas manteve a sociedade com sua base de exploração nos moldes coloniais.
Dessa forma, o país entrou no circuito da indústria mundial, apresentando produtos mais competitivos no mercado internacional; o café, por exemplo, ganhava cada vez mais espaço no superávit da balança comercial. No entanto, o Brasil também sofreu com a crise de 1929, agravada pela falta de diversidade, ou seja, o país mantinha-se apenas como exportador de produtos primários (como no período das relações comerciais entre a Metrópole e a Colônia), sendo, na maioria das vezes, relegado à condição de inferioridade nos contratos estabelecidos no comércio internacional.
Internamente, o país passava por uma fase conturbada na política; as insatisfações decorrentes desse processo não planejado de industrialização fizeram com que as camadas emergentes da sociedade começassem a ocupar espaço, reivindicando seus direitos. O trabalhador assalariado, mesmo sem garantias trabalhistas, começava a se organizar tendo em vista a sua exclusão do processo produtivo, quer no campo ou na cidade. No campo, a tecnologia e a mudança na estrutura da produção primária para atender os mercados externos tiravam o trabalho de muitas pessoas, enquanto que as cidades, por sua vez, independentemente da oferta de emprego nas indústrias e fábricas, sofriam com o êxodo rural, que mudava o perfil urbano da periferia com a formação dos cinturões de miséria. E as desigualdades regionais se apresentaram de maneira mais forte, pois, se no século anterior a miséria era mantida afastada dos emergentes centros industriais (ou ainda podia ser controlada), nos primeiros anos do século XX, ela veio a bater na porta do poder, expondo a ferida de um progresso desordenado e sem inclusão social.
Com as novas necessidades para a população e novos interesses em jogo para os governantes, as decisões políticas não ficaram exclusivamente restritas aos grandes centros. Os meios de comunicação mais ágeis e a imprensa ocupando cada vez mais espaço, inclusive como influenciadora da opinião pública, também contribuíram para que os debates políticos fossem levados para praticamente todo o país. Mesmo sendo em grande parte uma imprensa fortemente partidária de determinadas ideologias, a população começava a ter acesso através dos jornais e rádios, de forma cada vez mais rápida e atualizada, às notícias geradas nos centros de discussão política do país.
Apesar disso, as dimensões do país e a força exercida pelas oligarquias das diversas regiões brasileiras, contribuíram para a manutenção de suas culturas e ideologias firmadas ao longo de séculos de isolacionismo em relação ao núcleo do poder central. O Nordeste continuava sofrendo com o desmantelamento dos engenhos e o seu esgotamento devido à exploração sofrida durante o processo de colonização; o Sul, em especial atenção o Rio Grande do Sul, apesar de politizado e desenvolvido culturalmente, apresentava elites que se alternavam no poder, guerrilhas internas e ideologias partidárias marcando a história da região.
Os conflitos no estado entre Chimangos3 e Maragatos4 estavam ativos desde a Revolução Federalista de 1893, somente vindo a oportunizar uma trégua com a eleição de um candidato que, se não era de consenso, pelo menos retirava do poder Borges de Medeiros5: era Getúlio Vargas6.
Após a eleição de Júlio Prestes para a presidência da república, as denúncias de fraude começaram; o assassinato de João Pessoa, candidato a vice-presidente na chapa de Vargas, agravou o clima do país, culminando com a Revolução de 30, que conduziu Vargas ao poder.
O gaúcho abriu espaço na política nacional ao romper com as estruturas dominantes. Mas apenas para substituir por outra: a sua. A Era Vargas representa um período conturbado e contraditório da história do Brasil, pois apresenta um desenvolvimento econômico e industrial, garantias trabalhistas e uma democratização iniciada com o direito ao voto das mulheres ao lado de um retrocesso político com suas tendências fascistas que culminaram com a ditadura do Estado Novo.
As formas de repressão e as manifestações artísticas andaram lado a lado durante esse período; é importante salientar que a cooptação de intelectuais promoveu, segundo Nancy Baden (1999), uma espécie de "justificativa" ao cerceamento das liberdades individuais e uma limitação dos direitos civis por parte do governo. Essa política visava, de maneira clara, sustentar o poder do ditador no controle das manifestações artísticas e culturais, bem como da produção intelectual brasileira, que se deslumbrava com o desenvolvimento tecnológico, principalmente nas áreas da petroquímica e da siderurgia.
O nacionalismo sustentava e unia vertentes ideologicamente opostas em um ideal maior: o Brasil. Aqueles que não acreditavam ou não partilhavam dessa ideologia eram perseguidos, situação que se agravou durante o Estado Novo. Mas não foi só durante o período ditatorial que a democracia sofreu duros golpes, o autoritarismo estava presente mesmo em tempos considerados "democráticos"; segundo Schwartzman (1988), as estruturas de poder usavam de artifícios para mascarar a realidade e impor sua vontade também em condições não explícitas de repressão.

2.2. Modernização, Modernidade ou Modernismo?
Antes de abordar a produção literária desse período, é necessário evidenciar os conceitos que serão empregados no que diz respeito a Modernização, Modernidade e Modernismo.
A busca desesperada dos países ditos subdesenvolvidos pela tecnologia que pudesse aprimorar sua indústria levou a um processo de desagregação das estruturas sociais a exemplo do que aconteceu na Europa com a Revolução Industrial, ou seja, a modernização esteve distante dos anseios da sociedade como um todo. Todo o processo que possibilitou ao Brasil adentrar o industrializado século XX, também fez a maior parte de sua população ficar relegada a condições de vida que remontavam ao período feudal, quer sob a ótica do desenvolvimento cultural, quer sob a inclusão de pessoas abaixo da linha de pobreza, ou seja, sem condições para prover sequer suas necessidades básicas de sobrevivência.
A noção de Modernidade, segundo Zygmunt Bauman (1999), é marcada pela ambivalência na relação do homem com o mundo, pois o indivíduo encontra-se diante de uma realidade diferente da vivida em outras épocas. A diferença está na forma de encarar o mundo, ou seja, na visão que ele possui da realidade que o cerca; enquanto que o homem da Antigüidade Clássica e da Idade Média buscava o seu lugar no mundo, pois entendia este como sendo pronto e acabado7, o homem moderno, nessa concepção de Modernidade, enfrenta a possibilidade de questionar sobre que mundo lhe é apresentado e qual dos seus "eus" deve interagir com esse(s) mundo(s)8.
A produção cultural, principalmente no século XX, tende a refletir essa ambivalência e esse questionamento sobre a realidade. Ainda há a presença de ideologias que mantém o homem em suas estruturas cognitivas, levando-o a buscar seu lugar no mundo, mesmo este não estando preparado para recebê-lo, ao contrário, apresentando-se pronto para alijá-lo da sociedade organizada. Entretanto, cada vez mais esse questionamento busca espaço e a insatisfação do homem com a sociedade é um sintoma dessa inconformidade, não é mais suficiente reproduzir a sociedade, é necessário transformá-la constantemente para adaptá-la às novas exigências humanas.
Para o Modernismo há duas possibilidades de interpretação: a primeira caracterizada por sua proximidade com o ideal de modernidade, no qual os avanços tecnológicos e culturais deveriam provocar o desenvolvimento humano da sociedade como um todo. A segunda interpretação, relacionada com o processo de exclusão, relega a produção literária a um período, classificando-a sem se preocupar com o papel que desempenha na crítica às relações de poder. Essa noção de Modernismo fez com que se tivesse a impressão de controle das manifestações culturais e que estas não eram, ao menos em parte, resultantes destas mesmas estruturas sociais que buscavam novas formas de denúncia.
Ao expor certas condições de vida em sociedade, os poetas e escritores percebiam e atingiam o leitor com uma carga de questionamentos muito perigosos para a classe dominante. A Literatura, assim, necessitava ser "separada" do leitor o máximo possível, sendo colocadas barreiras classificatórias e catalogadoras, uma leitura superficial, distante e alienante. No entanto, quando tal período é abordado de forma diferente, isto é, sem o caráter classificatório, pode-se perceber as inovações que a produção literária trouxe para o desenvolvimento humano.


3. JOÃO SIMÕES LOPES NETO E GRACILIANO RAMOS

João Simões Lopes Neto foi o escritor que, através da representação do folclore gaúcho, conseguiu aproximar os leitores mais cultos da produção popular. Utilizando uma linguagem tipicamente regionalista e criando personagens identificadas com o tipo humano do gaúcho, chegando, várias vezes, a serem tratadas como pessoas inseridas no contexto histórico das narrativas, Lopes Neto extrapola o limite do real e do imaginário.
Blau Nunes e Romualdo são personagens que instigam pela problemática que aponta para a sua real origem e existência. Mesmo havendo uma forte inspiração do escritor em pessoas de sua convivência, ele próprio procura desfazer (ao menos em parte) as relações e especulações sobre as origens de suas personagens quando afirma que não se pode ler um conto ou causo na sua íntegra, tal qual foi escrito por ele. Deve-se, ao contrário, acrescentar um ponto a cada momento, a cada situação narrada, criando um novo conto, guardando apenas a essência do original.
Blau, o guerreiro da juventude e o sábio na velhice, sabedoria da terra, das histórias de vida que são, em muito, histórias de todo um povo representadas em uma única personagem, traz à tona o mito do gaúcho em sua plenitude: o herói, o guerreiro, a força e a valentia, a honra e o caráter. Mesmo fazendo toda essa representação, a personagem também marca um novo passo na realidade cultural do Rio Grande do Sul ao se definir como uma pessoa herdeira de toda essa carga de valores e de identidade.
Essa herança de valores é muito complexa para ser assimilada por um ser humano que é falho e limitado. Dessa forma, a personagem também carrega consigo as limitações humanas para ser, obviamente, aceito pelo imaginário coletivo como sendo a representação não do gaúcho, mas sim de um gaúcho. Isso faz com que ocorra uma proximidade do até então inquestionável mito com os problemas comuns do cotidiano. E, em se tratando da realidade rural, a labuta e as relações sociais de dominação e submissão impostas pelo sistema de classes sociais se faz presente como no conto Trezentas onças.
Assim, Blau é a representação mais popular do monarca, mas de um monarca inserido em uma realidade social em que só era dono da sua maneira de pensar, pois o próprio herói aparece como o Chasque do Imperador, ou seja, ao ser chamado para ser homem de confiança do imperador, Blau, ao mesmo tempo que se iguala ao governante enquanto homem, desmitificando a figura idealizada da majestade, rebaixa o tão consagrado mito do gaúcho ao nível do homem que é. Pois, por mais bravo e nobre que seja, não deixa de ser um cabo do exército imperial submisso às ordens do imperador.
Não bastasse a materialização em um tipo humano do mito do gaúcho, os Casos do Romualdo apresentam uma outra figura humana: vivo, ladino, esperto e, para não chamar de mentiroso, exagerado em suas estórias, nas quais sempre aparece como herói maior. O humor presente nos casos narrados pelo Romualdo e a sua impossibilidade de terem ocorrido, também contribuíram para a popularização do gaúcho e a conseqüente abertura de espaços para que o mito (até então inatingível) pudesse ser alcançado, comparado e questionado.
Lopes Neto não pode ser criticado por manter vivo o mito do gaúcho, sua obra, tanto ficcional quanto de reprodução folclórica, abriu espaço para a crítica e aproximou as elites intelectualizadas da realidade dos causos de galpões, do linguajar e da forma de viver e tratar das coisas cotidianas à maneira do peão humilde e simples. Sabe-se que esse foi o primeiro passo para que a cultura gaúcha pudesse começar o seu caminho em busca da sua identidade, identidade tipicamente campeira e rural que, com a modernização, o conseqüente crescimento urbano e o êxodo rural se viu novamente questionada.
É possível a comparação com Graciliano Ramos, escritor nordestino, em Alexandre e outros heróis, em função do riso evidenciado nos causos simoneanos. Na obra, Alexandre é um vaqueiro de pequenas posses e contador de histórias, que tem sempre em sua casa uma pequena platéia que ouve os contos fantásticos supostamente vividos por ele. As histórias ocorrem no sertão nordestino e apresenta um narrador em terceira pessoa, que depois cede a narrativa a Alexandre, que então passa a narrar em primeira pessoa.
O autor sempre “soube preservar a autenticidade da ambientação geográfica e cultural onde se desenvolvem seus romances, que era o mundo de suas origens e, como dizia, o único sobre o qual poderia falar.” (VIANNA, 1997, p. 92).

É importante considerar, na obra de Graciliano Ramos, que o social não prevalece sobre o psicológico, embora não saia diminuído. O que ela investiga é o homem nas suas ligações com uma determinada matriz regional, mas focalizado principalmente no drama irreproduzível de cada destino. Com isso, o romancista confere uma dimensão de universalidade à pesquisa regionalista em sub-regiões nordestinas, superando a atitude do simples depoimento ou relato, tão freqüente quanto característico de muitos que escreveram sobre elas. O expositivo cede lugar à síntese. (CANDIDO & CASTELLO, 1983, p. 290)

A partir do contexto sócio-político-econômico do Brasil na década de 30, surge uma prosa regionalista que apontava os problemas sociais da época. “Escritor regionalista que foi, Graciliano narrou a realidade de uma determinada região e as injustiças sofridas pelas camadas desprestigiadas” (BARRETO, 2008, p. 583).
Desse confronto entre uma visão ácida e melancólica, dotada de um tom de denúncia sustentado por um sentimento de perda que faz a identidade sucumbir, com o questionamento da noção de progresso9, apontando a decadência10. Assim, através do riso, do humor presente nas personagens e nos enredos comuns às obras dos dois escritores é possível se observar um rompimento com certos paradigmas e visões de mundo.
A derrota, a angústia e a entrega diante de algo próximo da compreensão da maioria das pessoas (problemas econômicos, amorosos), distante dos grandes problemas da humanidade ou de projetos nacionalistas que tornam – de acordo com o historicismo – os homens melhores, podem ser observadas no seguinte fragmento do conto Trezentas onças:
Então, senti frio dentro da alma... o meu patrão ia dizer que eu havia roubado! roubado!... Pois então eu ia lá perder as onças!... Qual! Ladrão, ladrão, é que era!... E logo uma tenção ruim entrou-me nos miolos: eu devia matar-me, para não sofrer a vergonha daquela suposição. É; era o que eu devia fazer: matar-me... e já, aqui mesmo! Tirei a pistola do cinto; amartilhei o gatilho... benzi-me, e encostei no ouvido o cano, grosso e fino, carregado de bala...(NETO, 1996, p. 17).

Ou ainda, a reflexão sobre o sentimento de perda da coletividade, do seu projeto de construção de uma formação humanista, no qual os homens dão um valor maior à vida, que pode ser percebida nesse momento – o da eminência da perda – no trecho de Angústia, de Graciliano Ramos:

Às vezes, horas depois de entrar na vila a rede coberta de vermelho, uma tropa de cachimbos invadia a praça, conduzindo o criminoso amarrado. Os cachimbos falavam alto e mostravam, cheios de suficiência facões e lazarinas; o matador tinha os braços presos, da barriga para cima estava todo embirado de cordas. A gente se alvoroçava. Os tabuleiros de gamão ficavam abandonados nos tamboretes. (...) E o criminoso, pisando com força, atravessava o quadro, a cabeça erguida, a testa cortada de rugas, o olhar feroz, trombudo, impando de orgulho. Algumas horas depois estaria acocorado a um canto da prisão, sem vontade, como seu Ivo. Mas ali, diante dos curiosos que se empurravam, representava o papel de bicho: franzia as ventas, mordia os beiços, dava puxões na corda e grunhia. Olhavam para ele com admiração e os cachimbos se envaideciam por havê-lo pegado vivo. (...) Um ladrão de cavalos seria maltratado, agüentaria facão, de joelhos, nu da barriga para cima, um soldado segurando-lhe o braço direito e batendo-o no peito, outro segurando o braço esquerdo e batendo nas costas. Depois os presos se aproximariam, camaradas, de repente lhe afastariam as pernas. O corpo cairia na pedra negra, suja de escarros, sangue, pus e lama. O cipó de boi chiaria no ar, cortaria o lombo descoberto. Mas isso era com os ladrões, os vagabundos, os autores de delitos miúdos. Um criminoso de morte era diferente, merecia consideração. (RAMOS, 1994, p. 148-149).

Da melancolia ao riso se tem esse questionamento da formação cultural e dos dogmatismos de uma sociedade. A melancolia carrega um sentimento de perda, de consciência sobre as contradições e barbáries existentes no processo de formação cultural ao longo da história, visto que “nunca houve um monumento da cultura que não fosse também um monumento da barbárie. E, assim como a cultura não é isenta de barbárie, não o é, tampouco, o processo de transmissão da cultura” (BENJAMIN, 1985, p. 225). O riso, por sua vez, pode ser entendido como uma superação, como um questionamento aos dogmas e como uma possibilidade de reiniciar reiteradamente o progresso humano, a consciência sobre suas limitações e pobrezas.
Sergio Paulo Rouanet elabora uma relação de interdependência entre esses dois “estados de espírito”, apontando elementos que podem auxiliar a análise e interpretação literárias:

Tristam é um melancólico, assombrado pelo fantasma da transitoriedade, do tempo que foge, da morte. Não surpreende, assim, que um dos livros mais lidos (e plagiados) por Sterne seja a Anatomia da melancolia, de Robert Burton. Mas o narrador insere invariavelmente essas reflexões em num contexto em que elas se tornam cômicas. Regride, assim, à tradição da Antiguidade, segundo a qual o filósofo Demócrito teria dito a Hipócrates que o riso era o melhor antídoto contra a melancolia. Não há dúvida, também, de que ele absorveu a lição de Rabelais, que escreveu no prólogo de Gargatua que não há como o riso para espantar o luto. (ROUANET, 2007, p. 202).

O riso, o exagero presente nos contos de Graciliano Ramos e João Simões Lopes Neto apontam para essa possibilidade de leitura. Há uma diferença estrutural entre eles que merece destaque: enquanto Lopes Neto estabelece um diálogo com o leitor, como se esse estivesse ouvindo a história, exigindo a sua entrada no universo mediato da narrativa (fazendo, inclusive, com que o leitor tenha a responsabilidade de aceitar ou não os fatos narrados e realizar a crítica acerca dos mesmos), Graciliano Ramos cria personagens que dialogam com o personagem narrador, fazendo a mediação crítica no contexto da obra (destaque deve ser dado ao cego que vê melhor do que todos os demais).
A relação entre esses escritores está muito mais próxima do que muitos supõem. Ambos afirmam que essas histórias foram recolhidas da cultura popular, como Simões Lopes Neto alerta o leitor logo no início de Casos do Romualdo: “Entendamo-nos desde já: É possível (o autor ignora-o), que haja coletânea semelhante, anterior, nacional, se existe, para melhor bem, que supere a atual no conteúdo e na forma”. (NETO, 1997, p. 23).
A semelhança de certas histórias narradas sustentadas na cor local gaúcha e nordestina chama deveras a atenção e, mais do que apontar relações de produção entre os dois autores, estimula uma reflexão sobre como essas narrativas se originaram e se estabeleceram em regionalidades tão distintas. A publicação dos causos do Romualdo teve início no jornal pelotense Correio Mercantil, a partir de 1º de junho de 1914 (Vide Anexo 1), desdobrando-se ao longo de vinte uma edições diárias, segundo aponta Carlos Reverbel (In: NETO, 1997), responsável pela primeira edição em livro dos Casos, datada de 1952. A apresentação de Alexandre e Cesária – Alexandre e outros heróis - data de 10 de julho de 1938, conforme comenta Osman Lins (In: RAMOS, 1994). É possível perceber essa relação através da seguinte citação:

Ia principiando a escurecer, mas não escureceu. Enquanto o sol se punha, a lua cheia aparecia, uma lua enorme e vermelha, de cara ruim, dessas que anunciam infelicidade. (...) Havia no campo uma tristeza de morte. A lua crescia muito limpa, tinha lambido todas as nuvens, estava com intenção de ocupar metade do céu. (...) Puxei a rédea, parei, ouvi um barulho de guizo. É a cobra chamada “viradeira”, porque qualquer animal mordido por ela vira-se logo de papo para o ar, estrebuchando ou logo morto. É cem vezes mais venenosa que a cascavel. (...) Foi só quando desafivelei o loro com o estribo, e fazendo deste arma, desferi uma pancada mestra sobre a cabeça da “viradeira”. Porém, ligeiríssima, a cobra ainda atirou um bote ao estribo, que era de prata, e tiniu, com o choque da dentada. Porém, matei-a. (...) Apresilhei novamente o estribo. Montei-me novamente. Comecei a sentir o pé apertado no estribo e o cavalo meio derreado, como se trouxesse todo o peso a um lado. Parei para examinar a esquisitice: o estribo estava grande que era um despotismo, sim senhores. Mal pude movê-lo. (...) Convenci-me, porém, que os dentes tinham ferido o estribo e deixado lá o veneno que existia no corpo dela.11

Cabe salientar que este trabalho apresenta apenas um pequeno levantamento de problemáticas a serem discutidas. Partindo da necessidade do conceito de regionalidade ser pensado como uma categoria de teoria literária diferente do conceito de regionalismo, pretende-se iniciar um processo de discussão que vislumbra a produção regional sob um enfoque mais dinâmico, evitando uma subordinação excessiva a elementos simplificadores, tais como a “cor local”.
Assim, as influências literárias e culturais e o processo de formação histórico-social do Brasil e das diversas literaturas regionais que o compõem, necessitam, basicamente, serem refletidas à luz de uma abordagem que tente levar em conta vários desses aspectos e suas intertextualidades. As referências às Aventuras do Barão de Münchhausen, do alemão Gottfried Ausgust Buerger, que se constitui em relatos de uma saga que chamam atenção para características psicológicas invariáveis do ser humano e exprime certos padrões universais de comportamento, encontram, nos autores gaúcho e nordestino brasileiros, uma outra dimensão. Dimensão esta que precisa ser mais aprofundada, tendo em vista a indagação principal de como regionalidades tão distintas no contexto da produção literária brasileira podem se aproximar de maneira tão evidente.
Essa problemática que, ao contrário de encerrar este trabalho, apenas evidencia uma discussão maior e importante, pois trata de todo um processo reflexivo acerca da produção cultural. João Cláudio Arendt (2010) destaca que o termo universal aparece quase com a mesma frequência que a palavra regional. Tal situação confronta exatamente o status e a valorização de conceitos envolvidos em um momento histórico no qual a literatura ainda é vista como submissa a modelos e valores preestabelecidos. Arendt afirma, tomando por base os estudos de Ligia Chiappini, de que “dever-se-ia não distinguir os tipos de regionalismo existentes, mas fazer a distinção estética entre obras boas ou más, tendo como foco o efeito que elas podem ter sobre os leitores” (2010, p. 02). Destaca, ainda, que a necessária discussão do(s) significado(s) das categorias região, regionalismo, regionalidade e literatura regional não avançou na mesma proporção que a emissão de juízos de valor, visto que a apropriação e o entendimento desses conceitos se faz a partir de uma visão que ignora a cultura “como espaço histórica e culturalmente construído por diferentes formas de representação” (2010, p. 02).
Ao criticar a utilização da categoria universal para medir qualitativamente a literatura regional brasileira, destacando as implicações ideológicas existentes nesse processo, Arendt também oportuniza a relação de uma outra forma de leitura, ou seja, a perspectiva alegórica voltada para o termo regionalidade em complementação – não em oposição – ao conceito simbólico que abrange mais do que a noção fechada de regionalismo, mas incorpora a questão ideológica em sua historicidade. Ler a produção cultural em seu espaço regional é mais do que conceituá-la aprioristicamente; é buscar, incansavelmente e admitindo a incompletude e a falibilidade desse ato, uma compreensão do processo de formação cultural.

4. REFERÊNCIAS:
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_____. Palavras e sinais. Tradução: Maria Helena Ruschel. Petrópolis: Vozes, 1995.
ARENDT, João Cláudio. Notas para o estudo das literaturas regionais. In: XXV Encontro Nacional da ANPOLL. Faculdade de Letras, UFMG, Belo Horizonte, 1, 2 e 3 de julho de 2010.
BADEN, Nancy. The Estado Novo Legacy. In: _____. The muffled cries. The Writer and Literature in Authoritarian Brazil, 1964-1985. Lanham: University Press of America, 1999.
BARRETO, Cintia Cecilia. Subjetividade da linguagem em Vidas Secas: discurso popular e identidade. Disponível em: <http://bibliotecadigital.unec.edu.br/ojs/index.php/unec02/article/view/274/348>. Acesso: 09 mar. 2008.
BAUMAN, Zygmunt. Modernidade e ambivalência. Rio de Janeiro: Zahar, 1999.
BENJAMIN, Walter. Alegoria e drama barroco. In: _____. Origem do drama barroco alemão. São Paulo: Brasiliense, 1984. Tradução, apresentação e notas: Sergio Paulo Rouanet.
_____. Passagens. Tradução: Irene Aron e Cleonice Paes Barreto Mourão. Belo Horizonte; São Paulo: Ed. UFMG; Imprensa Oficial do Estado de São Paulo, 2006.
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_____. A literatura e a formação do homem. In: _____. Textos de intervenção. Seleção, apresentação e notas: Vinícius Dantas. São Paulo: Duas Cidades; Ed. 34, 2002.
CHIAPPINI, Ligia. Do beco ao belo: dez teses sobre o regionalismo na literatura. Disponível em: <http://cpdoc.fgv.br/revista/arq170.pdf.pdf>. Acesso em: 20 ago. 2008.
INDURSKY, Freda. e CAMPOS, Maria do Carmo. Discurso, memória, identidade. Porto Alegre: Sagra Luzzatto, 2000.
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LAFETÁ, João Luiz. A dimensão da noite e outros ensaios. São Paulo: Duas cidades, 2004.
LIMA, Daniel. LivreMercado: Quem somos. Disponível em: <http://www.livremercado. com.br/quemsomos.htm>. Acesso em 16 set. 2008.
NETO, João Simões Lopes. Contos Gauchescos. 9. ed. Porto Alegre: Martins Livreiro, 1996.
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POZENATO, José Clemente. Algumas considerações sobre região e regionalidade. Disponível em: <www.ucs.br/ucs/tplPOSLetras/posgraduacao/strictosensu/letras/profes sores/jose_pozenato/artigo.pdf>. Acesso em 18 set. 2008.
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ROUANET, Sergio Paulo. Riso e melancolia. São Paulo: Companhia das Letras, 2007.
VIANNA, Lúcia Helena. Roteiro de leitura: São Bernardo de Graciliano Ramos. São Paulo: Ática, 1997.
1
Professor Adjunto da Universidade Federal Pelotas - UFPel. Líder do Grupo de Pesquisa CNPq ÍCARO (UFMS) e pesquisador dos Grupos de Pesquisa CNPq - Literatura e Autoritarismo (UFSM), e - Formação Cultural, Hermenêutica e Educação (UFSM). E-mail: jlourique@pq.cnpq.br.
2
ADORNO, Theodor. Negative Dialectics. New York: Continuum, 1983.
3 Denominação dada aos integrantes do Partido Republicano Riograndense (PRR).
4 Denominação dada aos integrantes do Partido Federalista Riograndense (PFR).
5 Governador do Rio Grande do Sul que se manteve no poder por mais de duas décadas tendo, inclusive, denúncias (muitas comprovadas) de manipulação das urnas para garantir suas reeleições.
6 Com a pacificação política, forma-se a Frente Única Gaúcha, visando a participação do Rio Grande do Sul na política nacional e apoio à candidatura de Vargas, quando da formação da Aliança Liberal, em 1929.
7 Esta visão do homem sobre o mundo, bem como sua relação com a sociedade é denominada de "cognitiva", possui uma relação com a metafísica no que tange a totalidade unificada. (Bauman: 1999).
8 Para essa transformação do pensamento humano em relação à realidade, a definição de "pós-cognitiva" evidencia esse processo de ruptura com a forma de pensamento anterior, perdendo a visão universal de totalidade e o senso de que as coisas são integradas, partindo para o sentido que o ser humano dá a elas, pois estão (todas) amplas e flexíveis demais. (Bauman: 1999).
9 Segundo Adorno (1995), “O conceito de progresso, mais ainda que outros, desfaz-se com a especificação daquilo que propriamente se quer dizer com ele: o que progride e o que não progride. (...) Seu uso pedante defrauda apenas aquilo que promete: resposta à dúvida e esperança de que finalmente as coisas melhorem, de que, enfim, as pessoas possam tomar alento.” (p. 37-38).
10 Entende-se, assim, que a decadência é o primeiro passo para que o progresso, não como teoria arrogante e dogmática acerca de valores estabelecidos e noções gerais acerca da formação cultural, de fato se estabeleça como um repensar, um “sair do encantamento – também o do progresso, ele mesmo natureza – à medida em que a humanidade toma consciência de sua própria naturalidade, e pôr fim à dominação que exerce sobre a natureza e, através da qual, a da natureza se prolonga. Neste sentido, poder-se-ia dizer que o progresso acontece ali onde ele termina.” (ADORNO, 1995, p. 47).
11 Fragmentos de dois contos/causos das obras de João Simões Lopes Neto (Três Cobras. In: Casos do Romualdo) e Graciliano Ramos (O Estribo de Prata. In: Alexandre e outros heróis. – grifado em itálico).

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